Da Voz para a Palavra. O Canto Lírico e os Silêncios
O canto ganhou uma força imensa em mim quando me senti dentro das palavras ao cantá-las. Decidi ser cantora lírica porque podia encher as palavras dos grandes mestres com o som emocional e espiritual, moldando-as à luz deste presente e da minha interioridade que ansiava visitar mundos e paisagens que me colocavam num referencial diria, omnipresente, onde o coração se move e expande a partir do fundo da emoção, sendo que as emoções humanas são intemporais e transversais, e sendo assim, são também promessa de elevação e iluminação espiritual. A minha alma sempre soube e me guiou para estes lugares onde no fundo somos todos iguais. e por isso, a determinada altura, e já em Berlim eu disse, eu não sou cantora, eu procuro o lugar onde se anula a fragmentação, e criei um blog chamado - plural de um.
Quando estudava uma canção imaginava cada palavra a correr no meu sangue, e antes de estudar a melodia, estudava sempre a fundo o poema, visitando a vida do poeta e do compositor para lhes ser o mais fiel possível, no fundo - para ser honesta. Um sentido de responsabilidade erguia-se dentro de mim, pois eu sabia que o som era mensagem, e que a mensagem para ser fecunda ao nível do espírito, tinha que beber diretamente da fonte da Verdade! Não sabendo como aceder à Verdade inteira, acedia antes ao mistério movendo-me dentro do amplo campo da minha imaginação sensível, onde pressentia a sombra e a luz de uma emoção e o quão diretamente ela estava ligada à omnisciência. Pureza, eu queria dar ao meu timbre a tonalidade da pureza! E eu sabia que apenas sendo fiel, leal, honesta, transparente, simples e profunda, é que poderia ser tão pura como a geometria sagrada da sílaba na palavra, no verso, no poema, na Vida, na Totalidade.
Aos 22 anos, depois de sair de algumas semanas de dispersão e vazio existencial escrevi estes versos: Quietude, sentir-se reflexo na água, luz branca na manhã. O absoluto existe para se tornar material em nós, este é o Milagre. Quando canto em português, na minha voz vibra um mistério ligado à portugalidade, um mistério que está ainda por desvendar! sinto o gosto sublime desta brisa atlântica na articulação dos versos de Antero de Quental e de tantos outros que deixaram um legado tremendamente espiritual na nossa paisagem lusa. E por isso, por ser tão leal a este mistério dentro das palavras, jamais me deixo levar pela tentação de encher a voz quando a melodia a pede fina, faço do vibrato um recurso emocional, e cada nota lisa, é uma palavra de semblante caído ... Inventei mundos em cada canção moldando o meu timbre ao coração de cada poema, que é, enfim, espelho da humanidade inteira.
Com o tempo fui percebendo que dentro do meu som havia algo que queria ser caleidoscópio ... fui transfigurando a voz de acordo com cada verso, ora enchendo-o num grito da Blanche de La Force, ora esvaziando-o num verso de Fernando Pessoa. A minha sensibilidade sempre teve aversão "ao fazer de conta", quando as palavras me pedem silêncio e sussurros, humildemente lhes empresto um som esvaziado pois sei que o tenho ... e o que aprendi ao longo do tempo, cantando o reportório multifacetado e extenso que estudei, é que é preciso ter coragem para colocar a palavra à frente da ideia sonora. Ser fiel à vontade da própria voz é um grito de vitória, que enche a Alma de auto-sustentação! E sinto que este é o fruto maduro que escuto quando me oiço cantar ao 30 ou 40 anos de idade, ali está o oiro da emoção e da consciência ... oferenda de uma primavera amorosa e real, assim canto, livre, independente e vigorosa no passo neste Caminho aberto ao longo dos tempos por tantos sábios, génios e Mestres que nos emprestam as suas palavras para o Bem Maior, e apenas para o Bem Maior!
"A Arte tem que ter a espiritualidade de Jesus Cristo"
Richard Wagner