Ars Poetica - Miguel Gullander
"Eu queria ser como esta criança que traduz as grandes dinâmicas telúricas, incompreensíveis e insondáveis, em sentimentos visualizáveis. Queria sentir-me como quem é o catalisador, aquele que, suavemente, força para dentro de ti - de ti - a enormidade da estrela na noite, aquela informe nuvem, a única onda. Queria, suavemente, soprar para dentro dos apertados peitos a picante poeira brilhante, porque, directamente, nós não conseguimos ver a evidência, nem sentir o milagre, saborear o suco da divindade em cada inspiração, em cada gota de sal - no vento que sopra entre folhagens virgens aos olhares humanos. Eu quero entranhar na minha língua - quero mastigar na íntegra - as questões de quem somos nós, de quem sou eu, e este eu de que falo és tu também, o único eu que existe, porque, se vires bem, nesta tua vida toda quantos "eu" conheceste? Só o teu eu. Tanto a tua como a minha existência apontam para o óbvio - só existe esse um eu. Essa uma e única Consciência. E eu quero colocar estas questões de modo sagrado - ars poetica - para poder tentar contribuir para a sanidade desta sociedade que cessou de fazer perguntas, de se sentar e ouvir o silêncio, ou de tentar sentir as palavras de outro irmão seu. Há tão poucos tradutores anímicos - e eu queria servir como esse homem, esse escritor, esse elementos humano que serve de elo, que re-liga as grandes dinâmicas e padrões ... da estrela, da areia, do mar, do vulcão, da lua, em linguagem compreensível, aceitável, mediada por estes dedos que escrevem, como catalisador - esse ser humano, o verdadeiro escritor, elo entre universos, a ponte do macrocosmos e do microcosmos, o tradutor - aquele que traduz e transporta para o coração dos homens aquilo que a natureza canta, murmura e urra por meio de forças invisíveis, subconscientes, informes - primordiais, puras."
in Perdido de volta de Miguel Gullander