A palavra Saudade no Portugal Intemporal

23-08-2024

Saudade, uma palavra portuguesa tão bonita e tão cheia de tudo, até diria que, se entramos dentro dela, podemos atingir a iluminação, tal como buda, mas uma iluminação diferente, com sabor a sal, cristal cheio de Tempo fora do tempo, cheio de Espírito Santo, sal capaz de encher o que está dentro com tudo o que vive lá fora - tornando assim igual o dentro e o fora - a saudade iluminada. 

Diria um marujo olhando o mar, inspirado na sua Fé ... Se a Terra nos dá a vida ... o que lhe podemos dar em troca? Fará sentido dizer que estamos em dívida para com a Criação? Não sabendo, mas sentindo, é esta a saudade que me mora no coração? Devolver a minha vida à Criação? ... Desde o princípio de tudo, deste mar eu vim e para este mar eu vou! Uma questão de necessidade, uma ambição da alma, uma vontade de enriquecer o chão, de sobreviver aos nadas, de atingir a iluminação, de, cegamente, seguir as ordens dum Infante para se morrer no mar e devolver a vida à Criação, sonhando ou sobrevivendo, matar a saudade da Criação ... 

 Hoje, e em mim, o marujo canta, e esta Saudade de que falo não é aquela má ... é a que vibra no pé que caminha, no ramo que se estende, no braço da cruz, no teto do templo e no teto do céu. Não me faz sentir mal, faz-me sentir vivo, a retribuir à Criação o presente da Vida, sentindo tudo, Sentindo com S grande - o Sentir da Sabedoria! Aquela tristeza que chora o momento que precisa ser chorado para logo a seguir o deixar correr como rio até ao mar - desprendido do que foi. Saudade boa, desprendendo-se do que foi! 

E diria a mulher com os pés gastos e fundos na areia ou na terra, saudade lusa, a questão que te coloco é, que espera é esta? Por onde hei-de caminhar? E caminha-se para onde? E a saudade responde: caminha-se para o passado, sempre para o passado, para deixar escancaradas as portas do futuro! Assim se livram as futuras gerações dos fados mal contados! 

Por isso, qualquer contador de histórias é um edificador de futuros.

Saudade lusa que moldou O Poema vivo que é o homem, e Agostinho da Silva falava tão bem desse Poema - de Camões, António Vieira e Pessoa, esse Poema quer ver-se livre da memória, por isso caminha com ela para a deixar descansada em terra que a coma. O húmus acenderá à maneira da inteligência maior, gestos livres da própria memória que se viu presa nos corpos visíveis e invisíveis - memórias sustentadas em forma de castelo ou palácio como o Palácio da Pena. 

Visitei Sintra na "pior altura do ano", apinhada de turistas subi até lá acima numa fila que para e arranca durante uma hora, dentro do autocarro, tal como eu, era ver os turistas agarrados ao google maps a ver quando terminava o traço vermelho, até que...se suspira de alívio e o autocarro acelera para chegar ao Palácio encantado. ... E em poucos minutos já podemos entrar nos quartos do fim da monarquia portuguesa, observar em fila os pertences pessoais de pessoas exiladas ou assassinadas, pertences da Rainha mártir, observar enfim o fim de 800 anos de monarquia, tirar a foto e caminhar ... subir até à alta cruz, ver a vista bonita, tirar a foto ao pé da cruz e caminhar ... passar pelo parque encantado, tirar a foto e caminhar ... Caminhar para onde? Como turista é óbvio que para lado nenhum, o passado é bonito assim preso por cordas que nos impedem de tocar a cama onde dormia D. Manuel II ou a escova de cabelo da Rainha D. Amélia. A questão é ... estas coisas em que não podemos tocar, estão mortas? A história que vive nelas está morta? Não. Está viva e está na ponta do nariz, no fio de cabelo, está no coração que bate neste pedaço de terra à beira-mar. 

 Voltando à saudade, a história de Portugal é trágica, se o mar salgado respondesse ao Fernando Pessoa diria de certo que lágrimas de Portugal são as lágrimas do mundo inteiro. Esse português que é uma pluralidade de si mesmos, visitou o mundo para acolher em si mesmo memórias que limpam a grande Memória à conta da sua pluralidade. Um mártir? Não, um apaixonado da Criação. Isto é tão difícil de entender como é difícil entender a vida eterna. E talvez esta seja a maior virtude da portugalidade, a de trazer em si o mar para que o mar se livre do Passado e possa dar algo majestoso em troca à Criação. 

Eu digo que a saudade portuguesa é a saudade desta Plenitude, vai obviamente além do pessoal, e quem nasce já com esta Missão de conhecer o fundo da vida, sabe que toda a tragédia é farol Daquele Paraíso ... um Jardim de Macieiras. 

Uma nação que se deixa corromper com ouro do Brasil ou fundos europeus, é uma nação para quê afinal? Duma bem larga perspectiva, andamos a corromper o halo dourado dum Espírito Santo para quê? 

Ao caminhar no meio dos turistas com um coração que se sentiu pesado, e ao sentar-me no trono da rainha, foi a tristeza que se mostrou. Tristeza profunda que não é minha...mas é. A tristeza de uma saudade que ali está para ir ao fundo do fundo e ser trespassado pela visão de uma cruz alada, vista de baixo para cima, indicando o Céu. 

E o fim da monarquia? Pergunto à história ... assassinar um rei para quê? Claro que podemos ler os livros e encontrar todas as justificações. Mas a questão da ampla memória, do Deus Tempo é ... terminar 800 anos de monarquia com um regicídio ... porquê? De certo já estava morta antes de morrer, e a resposta que procuro não se mede meramente com ideologias, a resposta que procuro vai além do visível, é uma resposta profundamente mística que vive no coração de Portugal. 

 Não faz sentido absolutamente nenhum deste ponto de vista perguntar se se é pela monarquia ou pela república, é óbvio que a Vida é da Vida, a Vida é da Criação. À lupa do Deus Tempo, seja Rei ou Presidente, quem quiser para si o que não é dele tem os dias contados. 

E eu tenho Fé neste Tempo, muita Fé, tanta que quase não me cabe no coração, encho a casa de livros de história à procura duma só palavra que me salve a mim e a tudo, aquela palavra que resume tudo, o princípio onde começa Jesus ... 

E que palavra tão bonita ... a Saudade. Que cada alma lusa sinta o seu coração, e sentindo-o, à sua medida, não seja turista da memória, antes o seu descobridor, para traçar o mapa da saudade até ao princípio de tudo.

...

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.